sábado, 27 de agosto de 2016

O VENTO LÁ FORA

a vida é a média entre o tudo e o nada

O documentário traz uma conversa descontraída e bem humorada entre as intérpretes Maria Bethânia e a ilustre professora de Literatura Portuguesa Cleonice Berardinelli. Maior lusitanista brasileira, a professora Cleonice é especialista em Luis de Camões e Fernando Pessoa. Sua tese sobre Fernando Pessoa foi a primeira no Brasil e a segunda no mundo. É professora emérita da UFRJ e da PUC Rio e membro da Academia Brasileira de Letras.

A conversa se desdobra em uma excelente aula sobre Fernando Pessoa e sua obra envolvendo, desde a declamação de poemas, às vezes brevemente comentados, a informações sobre o poeta e a criação dos seus heterônimos. Entre estes Alberto Caeiro, a quem Pessoa atribui o estatuto de mestre, e de cuja obra são extraídos os poemas XI e X declamados no início do documentário. O aparecimento de Alberto Caeiro, nas palavras de Pessoa, deu-se em um dia triunfal, quando numa espécie de êxtase teria escrito os trinta e tantos poemas que vão compor O Guardador de Rebanhos. Na voz da intérprete, Pessoa o define: Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática.

Pequenas interrupções para explicações, intervenções breves e pertinentes, dados biográficos ilustrados com poemas. O documentário é coerente quanto ao princípio de que Fernando Pessoa se define por sua obra, que é sua fonte biográfica. Isto se pode ver claramente no poema Autopsicografia e muito se revela no poema “O dia dos meus anos”, declamado com maestria pelas duas mulheres: o que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas). O que eu sou hoje é terem vendido a casa. /é terem morrido todos, /é estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...

Podemos ainda nos emocionar ao ver uma sublime declamação do não menos sublime “poema em linha reta”, de Álvaro de Campos. Violento, desencantado, irritado e crítico na definição da professora Cleonice. Sobre este heterônimo, diz Pessoa: Pus no Álvaro de Campos a emoção que não dou nem a mim nem a vida.

Não menos atenção se dispensa ao heterônimo Ricardo Reis, que na opinião da professora Cleonice Berardinelli teria sido uma criação difícil, visto tratar-se de um poeta antigo, clássico, pagão da renascença. Seus versos são rigorosamente medidos, mas não têm rima. O poema declamado: Quer pouco: terás tudo. /Quer nada: serás livre. /O mesmo amor que tenham / Por nós, quer-nos, oprime-nos. /Não só quem nos odeia ou nos inveja /Nos limita e oprime; quem nos ama /Não menos nos limita. /Que os deuses me concedam que, despido /De afectos, tenha a fria liberdade /Dos píncaros sem nada. /Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada /É livre; quem não tem, e não deseja, /Homem, é igual aos deuses.

Uma das mais celebradas obras-primas da literatura de língua portuguesa, o livro Mensagem é também reverenciado na voz das intérpretes. Nesta obra o poeta dedica profundo amor patriótico e desejo de regeneração nacional. Trata-se de uma obra poética que canta as glórias de Portugal entre o épico, o lírico e o místico e traduz a alma portuguesa na sua vocação heroica, mística, saudosista e messiânica. Dessa obra são declamados os poemas O Infante, O Monstrengo e Prece.

É importante salientar que a relevância do documentário reside, não somente em promover maior divulgação da obra de Fernando Pessoa, mas também em homenagear a brilhante atuação da professora Cleonice Berardinelli. Vale a pena.


O VENTO LÁ FORA (documentário) – Cleonice Berardinelli, Maria Bethânia e a poesia de Fernando Pessoa. Direção de Marcio Debellian. DVD. Inclui CD com a íntegra da leitura dos poemas. SESC, Quitanda, Debê Produções, 2014.

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