sexta-feira, 4 de março de 2016

"nenhum proveito à pátria..."

O Nariz
Nikolai Gógol

Fiz uma primeira leitura desse conto há alguns anos atrás com o mero fim de entretenimento. Notei o tom satírico, gostei e diria se tratar da fantástica história de um homem que em uma manhã qualquer acordou, olhou o espelho e notou a ausência do próprio nariz. Daí, então, perambulou desesperado pelas ruas a procura do nariz. Em vários pontos da cidade, o nariz aparece personificado. A perda do nariz, sua personificação e a naturalidade com que o acontecimento foi narrado dão à obra um caráter inusitado.

Recentemente voltei ao texto com o propósito de um exercício de interpretação, o que considerei muito difícil, por isso precisei realizar várias leituras. Encontrei dificuldade, sobretudo no início do conto. Na verdade, não entendi o porquê do texto entre parênteses no primeiro parágrafo: “(seu sobrenome desapareceu, e até na tabuleta onde aparece um cidadão com as faces cheias de sabão e a inscrição “e também se sangra” não se lê mais nada)”(p. 73). Será uma observação relacionada ao desfecho da história? Há intenção de narrar uma experiência vivida em sonho, ou de criar uma atmosfera de sonho?

O conto O Nariz, de Nikolai Gógol foi publicado em 1836 e a trama se passa em São Petersburgo. Relata situações onde se pode perceber falhas no sistema social da Rússia czarista, marcado pela corrupção do funcionalismo público e pela degeneração das relações sociais. Está dividido em três partes e há uma névoa que quebra a continuidade entre uma parte e outra. O texto está estruturado de forma linear, pois há relação de causa e consequência no encadear dos fatos. Porém, essa linearidade é propositalmente interrompida pelo narrador em trechos como: “nesse ponto uma névoa encobre completamente o ocorrido” (p. 77).

Gostei muito do conto, mas não sei se o entendi. Não me senti tentada a pular fora em momento algum, pelo contrário, me senti atraída. Apenas fiquei intrigada quando percebi que, embora já tivesse lido o conto em outro momento, esse mesmo me trouxesse hoje tantas informações inéditas. Não me dei conta da riqueza de elementos da linguagem. De quantas perguntas poderiam ser direcionadas ao texto, quantos sentidos poderiam ser atribuídos ao desaparecimento do nariz e seu estranho aparecimento dentro do pão, ou ainda qual a intenção de tanta ironia ao descrever os personagens. Além do humor satírico, Gógol parece se divertir propondo enigmas. É o que acontece, por exemplo, na troca de cartas, em que a resposta da senhora Alieksandra não expressa conteúdo coerente com a carta do Kovaliov, tampouco os nomes do remetente e destinatário conferem com os nomes dos personagens.

O recurso da ironia perpassa toda a trama. Logo na primeira cena, quando o autor descreve Prascóvia Óssipovna, a esposa do barbeiro Ivan Yákovlievitch, ele a descreve como uma dama de bastante respeito, grande apreciadora de café. São qualidades um tanto vagas, mas ainda assim, contrastam com a narrativa do pensamento da esposa, visto que esta se dirige ao marido sempre com impropérios: “imbecil”, “animal”, “vigarista”, “beberrão”, “bandido”. Isso evidencia uma relação degenerada e de desarmonia entre o casal, que não justifica a descrição respeitosa da personagem e que, portanto, sugere ironia.

Há ironia ainda na descrição do personagem Kovaliov, cujo título de assessor de colegiado é usado no sentido de depreciá-lo, pois sua patente teria sido adquirida no Cáucaso, onde não havia critérios rigorosos. O mesmo ocorre na descrição do funcionário da seção de publicidade onde o Major Kovaliov pretendia anunciar o desaparecimento do seu nariz. O funcionário é descrito como “respeitável funcionário”, embora mal levante os olhos para atender o Major. Aliás, o universo do funcionalismo público é um traço marcante na obra. 

O conto é singular quanto aos critérios que regem o texto literário: causa estranhamento logo no início; cenas e personagens – elementos clássicos de um texto literário – são ricamente descritos; o fato em torno do qual a trama se desenvolve é desconcertante. O autor “transita entre o trivial e o absurdo”, pois ao passo que constrói cenas do cotidiano que poderiam ser traduzidas em qualquer contexto social, o que dá um tom de realismo à trama, transita também no campo do fantástico, do absurdo, do inexplicável e faz com que tudo isso pareça possível e aceitável. É preciso desprender um grande esforço mental para imaginar o inimaginável: um nariz personificado na pessoa de um conselheiro de Estado; um homem que tenta se comunicar com um nariz; um nariz que transita pela cidade e frequenta repartições públicas. O autor vai ao extremo no artifício de provocar a imagem mental.

Toda a complexidade que promove o “atraso na recepção” e o “deslocamento de sentido” obscurece a trama, torna singular a percepção e incita a imaginação, exigindo um pacto entre o leitor e o texto. É o que projeta o texto em dimensão enviesada, e a leitura só vai funcionar para um leitor literário, predisposto a observar as entrelinhas e formular hipóteses de interpretação. Nesse sentido, pode-se afirmar que o texto escolhe o leitor e não o contrário. Para compartilhar uma trama tão absurda, o leitor precisa estar desprendido do sentido do “real”, apto para a “suspensão da descrença”, disposto a resolver os problemas que o texto propõe. Poderíamos então supor que o nariz dentro do pão, o nariz andando pela cidade, as cartas com os nomes modificados, tudo não passa de um sonho sonhado pelo barbeiro, ou pelo Major, ou pelo narrador.

Por fim, o autor do conto, Nikolai Gógol, está falando da literatura, pois o próprio narrador, no último parágrafo, dá alguma pista para uma leitura do conto. Sugere que a história é inverossímil, absurda, inexplicável e até sem propósito, e por fim levanta a questão: “onde é que não acontecem absurdos?”, talvez sugerindo ao leitor que ele não deve se deixar impressionar demais pelo absurdo da narrativa quando na vida nos deparamos com absurdos muito maiores que às vezes parecem inverossímeis. Ao final, o leitor é levado a pensar sobre o propósito do texto literário.

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